:: flores raras e banalíssimas ::

não sou a elisabeth bishop
:: flores raras e banalíssimas :: bloghome | contact ::
[::..archive..::]

:: quinta-feira, janeiro 06, 2005 ::

(Então pensou em esfaquear o vizinho, que não teria dorzinha nenhuma paralisando seus músculos, não havia impedimento físico. É, esfaquear o vizinho, nenhum impedimento, assim tudo seria mais fácil e tudo ficaria bem mas visível, menos invisível, sei lá, algo de importante precisava mesmo ser feito.Pegou uma faca, uma xícara e foi lá pedir açúcar.O que aconteceu depois?)

Bateu na porta com leveza, ainda não tendo decidido o que faria depois. Não sabia bem se esperava que o vizinho abrisse ou não. Não sabia bem se deveria esperar ou não que ele tivesse tempo de vestir algo e abrisse a porta, que terminasse de secar-se e abrisse a porta, engolisse o último gole de café por cima do último pedaço de pão, desligasse o telefone, escovasse os dentes, terminasse o capítulo, gozasse, calçasse os chinelos e abrisse a porta. Mentalmente ela dava as costas e descia correndo pelas escadas antes de ser vista. Mas na verdade ficou ali parada, o corpo mais imóvel do que ela desejava, só parada, pensando em todas as alternativas que tinha e esperando que alguma força superior, insight, iluminação, destino, tomasse uma decisão por ela.

Alguém tomou, o vizinho abriu a porta.

Minuciosamente falando, ele estava vestindo calça de sarja, calçado esportivo, camisa branca, cabelos levemente compridos, cor de mel, olhos amáveis, cor de mel, sem nada pra se defender, e secava as mãos num pano de prato por estar picando tomates para preparar uma refeição tão leve quanto ele, uma pasta qualquer com pouca gordura.

Ela nem pensou. Cravou a faca na barriga branca dele. Um homem mais estudado do que exercitado, porque embora tenha se revelado mais difícil do que ela imaginava enfiar uma faca numa barriga, aquele abdome não era nenhum modelo de resistência. O primeiro impacto era como rasgar um tecido, um pano, depois a lâmina entrava fácil, mole. Como aquelas salsichas que se vende na europa, sabe, que estalam na boca?

O vizinho obviamente não entendeu nada, com razão, a cena era insólita mesmo. Ele fora atacado por sua vizinha, concluiu mais de 30 segundos depois. E nada fazia sentido, afinal ela era uma vizinha normal. Vivia num silêncio razoável, não fazia tanto barulho pra se considerar pessoa louca e de má índole, nem tão pouco como os depressivos, psicopatas, esquizofrênicos e desajustados da solidão. Não fazia sentido, ela usava roupas de malha, jeans e camisetas, ao contrários dos tailleurs e coques das mulheres reprimidas que têm dentro de si uma tormenta represada de sexo e violência. E também não exibia tatuagens do demônio, piercings masoquistas, língua bifurcada, implantes de silicone nos braços, chifres de teflon por baixo da pele. Nada de estranho, nem por cima da pele. Ela não parecia nem de longe, nem de cima, nem de lugar algum, mesmo de dentro da mente, uma pessoa que mata outra. Não parecia capaz nem propensa, nem por ser tão má, nem por ser tão boa. Não fazia o menor sentido.

E o que aconteceu depois?


:: Charlotte Sometimes 10:46 da manhã [+] ::
...
:: quarta-feira, dezembro 01, 2004 ::
O Louco olhava na tv uma vendedora de maçãs iraquiana dentro de um bloco de gelo. Michael Moore apresentava sensacionalmente aquela descoberta, mais uma das táticas de guerra do governo de um país que não desocupa a moita.

O Louco fica triste, bebe, olha pela janela, espera alguém entrar, bebe, fica triste, o Louco quer morrer e se desespera.

Se não puder morrer quer voltar a ser mulher porque só elas são capazes de simplesmente continuar vivendo.

:: Charlotte Sometimes 8:48 da manhã [+] ::
...
:: quinta-feira, novembro 04, 2004 ::
A Louca estava em diálogo com o próprio estômago. Ele pedia comida, ela lhe dizia que a hora não havia chegado, o almoço já tinha passado e não estava escuro o suficiente para se dizer hora de jantar. O estômago fez uma preleção bastante lógica sobre a dependência de conceitos aprendidos desde a infância e sobre como eles interferem na nossa real liberdade, e o quanto a vida perdia de essência quando o dever sobrepõe-se ao querer e que ela iria morrer se não comesse alguma coisa logo mas ela disse que não iria morrer, porque esse não era o dia de sua morte. O estômago então pensou ruidosamente e disse que cozinhasse algo enquanto ele decidia o que fazer. A Louca foi ao fogão, colocou água dentro de uma panela, sal, batatas com casca porque ela era louca e velha e não tinha mais nenhuma razão na vida para descascar as batatas, pegou a colher de pau que nunca lavava e mexeu. Mexeu para a direita, depois para a esquerda, depois para a direita e depois para a esquerda, até perceber que aquela panela era como um relógio e se ela continuasse a mexer para a direta e depois para a esquerda, para a direita e depois para a esquerda, ela continuaria para sempre a voltar as horas que vivia, uma por uma, uma para a direita, depois de volta ao começo, à esquerda.

Durante 400 anos a louca mexeu a panela, depois o movimento do conteúdo a hipnotizou e ficou assim, como que adormecida. Quando despertou, largou a colher, abriu uma cerveja, sentou-se no sofá a ver futebol na TV e ficou esperando que alguém cuidadesse da cozinha e adiasse a morte por ele.

:: Charlotte Sometimes 1:24 da tarde [+] ::
...
:: quinta-feira, setembro 23, 2004 ::
- Sylvia, por favor, me traga um café antes de morrer?
- Claro, mas espere um momento, que estou acabando de vedar as janelas.



:: Charlotte Sometimes 4:58 da tarde [+] ::
...
:: terça-feira, agosto 10, 2004 ::
A Louca morava numa casa sem porta numa rua do centro da cidade gigante. A casa, de 2 cômodos e 25 metros quadrados, estava cercada de construções monumentais feitas em vidro e ligas metálicas, e eram habitadas exclusivamente por empresas que trabalhavam em turnos durante 24 horas por dia. A Louca não conseguia dormir porque as luzes das empresas estavam sempre acesas e ela não sabia mais quando era dia ou noite. Por isso a Louca não morria, porque aquele dia eterno não acabava e portanto nunca chegava o amanhecer do dia da sua morte. A Louca estava lá só esperando, sem poder sair de casa, sem poder relaxar e morrer.


:: Charlotte Sometimes 10:15 da manhã [+] ::
...
:: segunda-feira, agosto 09, 2004 ::

ela andava de nariz empinado e cara de propaganda de perfume, se achando com pó de arroz no rosto, chanel nos pulsos, rosa púrpura atrás da orelha, sapatos de flamenco, colo de sofia loren, passadas de cid charisse, alcance de tempestade solar, efeito de uma winchester. E todos aqueles olhares quando ela passava com a barra da saia presa na meia-calça e sua bunda era branca e estava toda de fora.



:: Charlotte Sometimes 3:00 da tarde [+] ::
...
:: terça-feira, abril 22, 2003 ::


e eu era o palhaço vestido de bailarina


:: Charlotte Sometimes 3:22 da tarde [+] ::
...


E nem o ar se move quando não falamos. É a serenidade de depois de tudo quando se está na cama sem nada em volta a não ser um breve diálogo de calma e de vozes baixas. Sobre qualquer coisa, breves vibrações de voz, lentas esperas e compreensões, a entrega mais ao momento do que ao outro, a entrega da alma, o escorregar leve e oleoso do que existe dentro da gente de vida. A vida inteira é o nome disso, a vida inteira sendo uma cena, a vida inteira dialoga lentamente na imobilidade com as janelas escancaradas os lençois espalhados os braços abertos as costas dispersas os olhos no nada a gota de suor suspensa no rosto como se fosse uma lágrima de felicidade.
Mas nem existe movimento suficiente naquilo pra ganhar nome felicidade, é só paz e plenitude e imaginar como seria um coração atravessando o outro.
Uma pele encosta na outra e se dorme.



:: Charlotte Sometimes 3:21 da tarde [+] ::
...


Antes de tudo eram as borboletas amarelas. E eu, daltônica, que quer dizer um tipo de cegueira que quer dizer depressão como tudo o que é inventado, levanto os olhos olho paisagem e não me procuro nela, achando que ela não me tem, e não compreendo que natureza sou eu e concentro foco estudo devoro com órbitas ávidas pupilas abertas pálpebras escancaradas boca salivando toda aberta engolindo mundo engolindo mundo engolindo mundo que não é gente.
Mas...
Mas eu tenho pés de chumbo e estômago de digerir gente pessoas e corpo de esfregar peles e sexo de enforcar sexos e pernas de amarrar e braços de dar nós e laços de marinheiro e sempre então me esqueço das borboletas amarelas, que não há coisa mais amorosa na viduniverso que os desenhos nunca iguais, nunca diferentes, nem nada tão indiferente quanto os desenhos das asas das borboletas amarelas, sendo eu também uma delas.
O resto não tem importância.



:: Charlotte Sometimes 3:21 da tarde [+] ::
...

This page is powered by Blogger. Isn't yours?